O testemunho do personagem central da história que aqui segue foi registrado em 2007 pelo professor Yedo Godoy em livro que reúne suas crônicas publicadas no jornal “O Diário do Rio Claro”. O professor conta que como afilhado do protagonista Ettore Cardini, dele ouvia os relatos quando era criança. Yedo Godoy era integrante do Centro Literário Rio Claro (CLIRC)..
A história
Em suas crônicas, o autor conta que seu padrinho Ettore Cardini nascera, talvez em 1896, em Pietra Santa, pequena cidade da província de Lucca, região da Toscana, que tem como capital Florença, berço das artes italianas.
Ettore foi escultor em ateliê na cidade em que nasceu, próxima das montanhas de onde se extrai o mármore de Carrara, famoso desde o Império Romano e utilizado em igrejas da Idade Média e por Michelangelo na Renascença.
Como irá se ver, depois da I Guerra Mundial Ettore Cardini veio para o Brasil. Dois de seus irmãos foram para os Estados Unidos. Em Rio Claro ele casou-se com Maria José Godoy. Ela era sua vizinha e professora na escola Joaquim Salles.
O casal tornou-se padrinho de Yedo, também seu vizinho. O casal morava na Avenida Cinco. Ettore instalou seu ateliê, um barracão, na esquina com a Rua 9. Esculpiu imagens que até hoje se encontram no cemitério municipal. Quando criança, Yedo o acompanhava no trabalho no ateliê. Foi ali que o professor ficou sabendo da história do Anjo da Concórdia.
Na Itália
A história começa quando Ettore Cardini era aprendiz de escultura no ateliê de Pietra Santa. Em uma cidade vizinha morava a poderosa e rica família Camaiore. Na cena entra então um jovem membro daquela família. Ele era ótimo em natação. Conduzia canoas a remo com perícia. Em época de verão, entre junho e agosto, o jovem fazia incursões pelas praias da região, que conhecia tão bem. Tinha espírito aventureiro.
Em certo dia ele foi pego de surpresa por uma tempestade enquanto navegava sozinho. Não voltou para casa. Já era noite. De início a família não se preocupou por ter certeza de que ele era exímio nadador e sabia se cuidar. Estimou-se que tivesse encontrado algum abrigo para se proteger da tempestade.
Como ao longo do dia seguinte o jovem não apareceu, a família se alarmou. A preocupação se tornou geral. Naquela noite eles avisaram a polícia. Na manhã que se seguiu começaram as buscas pela região.
Em local não muito distante, o barco foi encontrado em uma das praias. Mais adiante, os remos. E, finalmente, encontraram o corpo do jovem que morrera afogado. A comoção foi geral na província. Assunto dos jornais.
A estátua
Meses depois da fatalidade, os pais do jovem estiveram no ateliê de escultura na vizinha cidade de Pietra Santa. O casal em luto encomendou uma estátua que perpetuasse da memória do filho. Ettore Cardini, o aprendiz de escultura que trabalhava naquele ateliê e viria a morar em Rio Claro, testemunhou a cena toda.
O casal descreveu como queria que fosse a estátua: um barco, açoitado pelas ondas, os braços erguidos para o céu e segurando uma grinalda de rosa. Um estreito lençol cobriria sua cintura e, como o rapaz era um modelo de filho, deveria ser uma figura de anjo, com grandes asas e expressão de paz e concórdia.
O casal nem perguntou quanto ficaria a obra. Escolhido o bloco de mármore Carrara, uma equipe de escultores se concentrou na execução da obra.
Do inicial desbaste da pedra seguiram-se os traços em carvão desenhados pelo mestre. A forma definitiva ficou para os mais especializados conforme o modelo já feito em gesso. Depois do incidente da quebra de um dos braços ao alto, uma adaptação bem sucedida fez os braços modelados junto ao peito, como se vê hoje. Não se sabe quanto tempo foi gasto até a conclusão.
Os trabalhos foram acompanhados periodicamente pela família, que dizia estar satisfeita com os resultados.
A estátua pronta ficou em exposição no ateliê para admiração dos moradores da cidade. O anjo equilibra-se sobre uma barca em mar agitado. A perna esquerda fica para frente, enquanto a direita se mantém um pouco atrás. A asa esquerda está reta para baixo, enquanto a outra, vira-se para a direita, dando a impressão que o anjo acabara de descer sobre o barco, trazendo nas mãos uma grinalda de flores.
Destino
Daí a história segue para um desfecho surpreendente que nunca foi esclarecido. A família que encomendara a obra a acabou recusando. A estátua foi posta de lado e a memória do jovem e a dor por seu falecimento acabaram no esquecimento.
O momento político na Itália era conturbado. O reinado passava ao poder fascista de Mussolini. Logo após a I Guerra Mundial, Ettore Cardini, já profissional em escultura, viera para o Brasil.
Tempos depois, certo dia, para sua grande surpresa, ao visitar uma marmoraria em que havia trabalhado em São Paulo, ele encontrou nada menos do que a estátua do anjo que vira ser feita na Itália.
A loja
Até aqui, o relato de Yedo não deixa referências sobre onde ficaria tal loja onde esteve a estátua. No entanto, num episódio paralelo, mais recentemente, Luiz Roberto Macha, o Tigrão, presidente da Escola de Samba “Os Indaiás”, veio a identificar qual era a marmoraria de São Paulo em que esteve a escultura.
Assim conseguiu porque uma foto do Anjo aparece em uma propaganda de arte tumular publicada em antiga revista paulistana. O anúncio era de uma loja na Rua da Consolação, na vizinhança do cemitério. A descoberta foi feita quando Macha pesquisava a história de Rio Claro para desenvolvimento de samba enredo para os “Indaiás” nos anos 1980.
Rio Claro
A história da estátua permaneceu em São Paulo até Rio Claro entrar em cena por seu aniversário de cem anos, em 1927, a ser comemorado com festas durante todo o mês de junho. Aquela foi certamente a maior comemoração que a cidade promoveu em todos os tempos. O prefeito era Irineu Penteado.
Aconteceu, naquela data, que os membros da Sociedade Italiana resolveram homenagear a cidade com um grande presente de aniversário que simbolizasse a imigração ao Brasil e Rio Claro pela concórdia entre seus moradores.
Em meio à dificuldade de escolha de algo com tão amplo significado, Ettore Cardini, já com seu ateliê na esquina da Avenida 5 com a Rua 9, lembrou da estátua que estava na loja de São Paulo. Diante à sugestão, uma comissão formada por integrantes da Sociedade Italiana foi com ele até a Capital para avaliar a peça. A avaliação conclui que não haveria melhor presente do que aquele para o centenário de Rio Claro.
Dias depois, a estátua chegou à cidade. Ficou guardada na sede da Sociedade Italiana. Preparou-se uma festa para sua apresentação aos moradores. Um pedestal foi erguido no Jardim Público para recebê-la onde passaria a representar seus significados para a posteridade.
A entrega
Em memorável evento, em um domingo, dia 19, às 13h30, a estátua do Anjo da Concórdia, no Jardim Público, foi entregue (foto acima) à cidade pela colônia italiana. A solenidade pode ser conferida ainda hoje por haver sido filmada pelo cineasta Caetano Matanó.
O filme
Em produção patrocinada por Nicolau Mazziotti e pela matriz de São João Batista, o filme “Os festejos do Centenário de Rio Claro” traz ampla cobertura das comemorações daquele aniversário da cidade e encontra-se em exposição do Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno da Veiga”.
Anos 60
Jovens que se reuniam no espaço do Jardim Público em torno do monumento nos anos 1960 se denominaram “Turma do Anjo”.
Hoje
Depois de um longo período de deterioração, após restauro e protegida por grades no início dos anos 1990 , no governo de Azil Brochini, a estátua acaba de ganhar uma série de melhorias.
O monumento recebeu serviços de limpeza, restauro e nova pintura foi feita na grade de proteção no entorno. A grama ao redor da escultura foi substituída por calçamento, voltando às características originais.
A revitalização do Anjo da Concórdia foi feita por grupo de amigos sem custo ao município. Além dos serviços de limpeza e restauração, o monumento também ganhou iluminação especial com quatro refletores. A entrega das obras foi feita ao prefeito João Teixeira Júnior na segunda-feira, dia 20 de janeiro, às 10 horas, pelos representantes do grupo de amigos: Milton Mônaco, José Geraldo Favaro, Antonio Luiz Ferreira e Adilson Luís Reali.
Memorial
O professor Yedo Godoy trata a estátua do Anjo da Concórdia como “um dos símbolos mais amados de nossa cidade”.
Documento
Os termos do documento da entrega
Excelentíssimo Senhor Prefeito e Vereadores da Resp. Camara Municipal de Rio Claro
A Colonia Italiana de Rio Claro, participando jubilosamente ao primeiro Centenário de Rio Claro, resolveu ofereceu uma estátua á cidade, para que fique eterno testemunho dos férreos laços que unem os elementos italianos e brasileiros e que sempre cooperaram com perfeita harmonia de vistas para o progresso local. Essa estatua recordará e indicará aos pósteros a concordia que, sempre soberana deve reinar entre os nossos elementos.
A estatua, em mármore de Carrara, trabalho de arte, feito na Italia, mede 1m90 de altura, com uma base de 0,53 x 0,58, será colocada sobre uma base de pedra-granito de 0,50 de altura, e representa O ANJO DA CONCORDIA sobre uma barca, o que lembra os primeiros italianos que, atravessando o oceano, aqui aportaram para mais estreita e producente colaboração.
A Comissão encarregada formula o presente requerimento para que o Exmo. Sr. Prefeito se digne designar o local em o nosso jardim publico, onde a estatua deve sêr colocada, assim como providenciar para que seja feito um canteiro ao redor do local designado.
Pela COLONIA ITALIANA DE RIO CLARO
Presidente Honorario da Societá Italiana Benef.
Presidente Effectivo da Societá Italiana Benef.
Agente Consular da Italia em Rio Claro
Conselheiro da Societá Italiana Beneficenza
Conselheiro da Societá Italiana Beneficenza.
(Seguem as assinaturas a serem identificadas)
Por J.R. Sant’Ana / Rio Claro – SP Janeiro, 2020