O que se aprende com os livros? Afinal, por que dedicar um tempo precioso da vida para, em silêncio, e olhos grudados num papel, vários deles, em sequência, saber o que pensa, sente, acredita, e não acredita, deseja e repudia, um sujeito por nós desconhecido senão pelo nome e pela foto, com o qual não temos nenhum vínculo, e, por vezes, nenhuma identificação; nada nos move em direção àquele sujeito e sua obra, senão a curiosidade. Por que tomar conhecimento do mundo paralelo, criado por aquele que escreve?
Dentre as várias formas de arte, a música emociona e a literatura provoca. Uma satisfaz os instintos primitivos mais contundentes no ser humano. A outra, insulta o leitor, e o instiga a sair do seu comodismo, exigi-lhe um esforço a mais para o entendimento do que se pretende transmitir por meio das palavras.
As palavras são soberanas. As imagens gravadas numa tela ou esculpidas no barro são sugestivas, subalternas, se dispõem a servir, e se eternizam no olhar daqueles que a admiram. Mas, os que desejam entender, definir as imagens em algo concreto, descritível, terão que, necessariamente, recorrerem às palavras.
A música desperta o surgimento das palavras que melhor as expressem. Bem sabem disso os poetas, em busca da musicalidade dos versos concebidos. Outras substâncias menos dignas provocam o mesmo efeito que a música. Mas não proporcionam a viagem libertadora para a outra dimensão da realidade, como fazem as palavras.
Conheci um homem que colecionava máquinas de escrever. Livros não. Ele os lia, os livros, e os esquecia n’algum canto do quarto pequeno e imundo onde morava.
As máquinas de escrever foram se acumulando no corredor, em frente ao seu quarto. Até que os vizinhos o denunciaram. Então, o Serviço Municipal de Retirada de Bugigangas Imprestáveis e Inúteis Sem Nenhum Proveito para a Espécie Humana, veio retirar as máquinas de escrever. Foram colocadas todas elas na caçamba do Cata Bagulho. Foi uma noite triste aquela. O homem pensou que, talvez, começaria a colecionar livros. Mas não estava certo disso. O certo é que jornais teriam melhor utilidade.
Bastava dobrá-los e virariam facilmente um encosto pra cabeça, ou um papel higiênico, em momento de maior necessidade; enfim, uma toalha de mesa.
O canarinho que mantinha preso na gaiola, provavelmente não gostaria nenhum pouco da ideia. Nem o gato xereta, da vizinha boazuda do quarto ao lado.
Afinal, para que servem as palavras? – disse o homem – senão limitar o ser humano em suas aspirações, trancafiá-lo em seus sonhos, submetê-lo à estagnação diante de sua revolta. Pô-lo de joelhos e mudo diante do inevitável: a miséria.
A música tinha efeito imediato. A pintura distraía a mente. A literatura, porém, atormentava a alma. E o fazia pensar, e lembrar de seus medos e frustrações.
O escritor é um cínico. Ele transfere ao leitor tudo aquilo que o incomoda. Isto pensou o homem, quando, naquela noite, viu colocarem na caçamba do Cata Bagulho, a última máquina de escrever de sua coleção, enquanto um menino, à distância, a tudo observava com interesse.
Pela manhã, o homem virava-se na cama, tentando aproveitar os últimos momentos de conforto, antes que o fiscal da loja viesse retomar a cama por falta de pagamento.
Amanhecia lentamente. Virou-se na cama, uma vez mais, para o lado da parede, como de costume. Talvez o piedoso fiscal, concordasse em deixar ao menos o colchão, dá-lo por esquecido, quem sabe, para apanhá-lo no dia seguinte. Uma noite a mais de dignidade não faria mal nenhum – pensou o homem.
A chuva começava a cair naquela manhã. Chegava devagar; bem devagar… a chuva. E com a chuva, que agora batia mais amena à porta, o homem escutou o barulho inconfundível das teclas da máquina de escrever. Levantou-se para ver. Amanhecia. Era o menino, tentando encontrar as suas primeiras palavras.