Preparar uma bebida é um ritual. Acabo de fazê-lo. Quatro limões espremidos com as mãos, num copo grande, e duas medidas de água. Nada de açúcar, nem adoçante. O suprassumo da amargura ácida. É de fechar os olhos enquanto o líquido precioso escorre garganta abaixo.
E são 10 da manhã. Esse é um ritual de todos os dias. Faz bem. Quando me faltam ideias, como agora, para escrever, eu descasco laranjas. Sento na cadeira, no quintal lá de casa, um corredor, na verdade, coloco um balde entre as pernas e, sob os olhos atentos de Samira, a cachorra cúmplice de meus devaneios, vou descascando laranjas na esperança, geralmente vã, que as ideias venham. Vez em quando costuma surgir alguma. E acaba virando uma crônica, um conto, um poema. Descascar laranjas é também um ritual.
O ritual, seja qual for, faz parte de nossas vidas. Se você escova os dentes todos os dias pela manhã, isso é mais que um hábito, é um ritual. Porque dele depende a saúde de seus dentes. São Boticão dos Pobres Desdentados agradece.
Há algo de profano e de sagrado no ritual. O profano, para mim, é colocar apelido nas pessoas, sem que elas saibam. Maldade pura. Mas é apenas o menor e menos profano dos meus rituais. E não me furto aos rituais sagrados, faço minhas preces todos os dias pela manhã, ao meio-dia e às seis da tarde, na direção do sol. O início, o meio e o fim de cada dia.
Para o Sr. Dicionário, ritual é o conjunto de gestos, palavras e formalidades geralmente imbuídos de valor simbólico. Tem a ver com religião, seja qual for, submissão a ela, aos seus preceitos. Mas acho que o finado Joseph Campbell vai além no seu entendimento a respeito do ritual. Vejamos o que ele diz: “Um ritual é a encenação de um mito. E o mito é uma projeção da profunda sabedoria da psique. Quando alguém participa de um ritual, está participando do mito e sua consequência está sendo lembrada da sabedoria de sua própria vida”.
Campbell, falecido em 1987, é considerado até hoje a maior autoridade em mitologia. Seu mais famoso livro é “O Herói de Mil Faces”, publicado no Brasil, em 1992, pela editora Cultrix. No livro, Joseph Campbell discute a teoria da jornada do herói arquetípico, encontrada em várias mitologias e culturas por todo mundo. Ao estudar inúmeros contos e compará-los entre si, o autor compreendeu que existe uma estrutura comum a todas as lendas, mistérios e histórias.
Para Campbell, desde as mais simples histórias de contos de fada, passando pelos argumentos mais difíceis apresentados pelos filósofos, e até mesmo os nossos sonhos, sofrem influência de uma simples história de passagem, o que confirmaria que, crescer e amadurecer, de fato, é viver desafios e sacrifícios.
Devo confessar ao leitor que não estou imune aos desafios. Escrever esse artigo foi um deles. 39 graus de febre, garganta inflamada, afônico e olhos lacrimejantes, entretanto, não me impediriam de fazê-lo.
Se você se interessou pelo assunto e, especialmente, por Joseph Campbell, sugiro a entrevista dele, disponível no Youtube, para o jornalista Bill Moyers, pouco antes de Campbell bater com as botas. A entrevista virou livro, que o colega Anselmo, faz alguns anos, xerocou para mim.
Quanto aos sacrifícios, talvez, o mais difícil que enfrento atualmente, é não poder preparar o Mojito, no sempre agradável La Bodeguita. Quem sabe, um dia…! Até lá, continuo a me dedicar ao ritual de espremer 4 limões, todos os dias, às 10 da manhã.