Hoje, o Diário do Rio Claro aborda a última enfermidade alusiva ao Fevereiro Roxo, cujo desígnio é conscientizar acerca de três males que acometem milhões de pessoas: Alzheimer, fibromialgia e lúpus.
O Centenário, neste domingo, esmiúça esta última.
Com esse propósito, consultou a doutora Rosana Soares, reumatologista, que gentilmente atendeu à reportagem e com o intuito de bem informar e prestar serviço, se prontificou a colaborar.
O que vem a ser lúpus?
De acordo com a profissional, lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune que causa resposta inflamatória crônica. “Todos nós sabemos que o sistema imune existe para nos defender contra infecções e, para isso, usamos dois tipos de defesa: a resposta imune celular e a humoral. Esta última é feita com a produção de anticorpos que são voltados contra agentes infecciosos que podem causar doenças”, explica.
Rosana afirma que em algumas pessoas, o sistema imune perde a capacidade de reconhecer as células e proteínas do corpo como sendo próprias e passa a produzir anticorpos contra estas células. São os chamados auto anticorpos, que reagem com proteínas e células dos vários órgãos do corpo, levando a um processo inflamatório.
São reconhecidos dois tipos principais de lúpus: o cutâneo, que se manifesta apenas com manchas na pele (geralmente avermelhadas ou eritematosas, e daí o nome lúpus eritematoso), principalmente nas áreas que ficam expostas à luz solar (rosto, orelhas, colo e nos braços), e o sistêmico, no qual um ou mais órgãos internos (rins, pulmões) são acometidos.
Conforme explica, o lúpus pode ocorrer em pessoas de qualquer idade, raça e sexo, porém, as mulheres são muito mais acometidas. Ocorre principalmente entre 20 e 45 anos, sendo um pouco mais frequente em pessoas mestiças e nos afrodescendentes.
“Não dispomos de números exatos, mas as estimativas indicam que existam cerca de 70 mil pessoas com lúpus no Brasil, sendo a maioria mulheres.”
De que modo a doença é contraída?
Embora a causa do LES não seja conhecida, a médica afiança que fatores genéticos, hormonais e ambientais participam do desenvolvimento da doença. Desta maneira, pessoas que nascem com a susceptibilidade genética para desenvolver o LES, começam a apresentar alterações imunológicas após sofrerem interação com fatores ambientais (irradiação solar, contato com agentes infecciosos) que funcionam como um gatilho para desencadear a resposta imunológica inadequada, perturbando a imunorregulação.
“A principal delas é o desequilíbrio na produção de anticorpos que reagem com proteínas do próprio organismo e causam inflamação em diversos órgãos, como na pele, mucosas, pleura e pulmões, articulações, rins, entre outros”, expõe.
E quais são os sintomas?
Rosana Soares salienta que a característica do LES é a sua diversidade de apresentações clínicas. Essencialmente, qualquer órgão pode ser acometido pela doença. Segundo ela, os sintomas do LES são diversos e tipicamente variam em intensidade de acordo com a fase de atividade ou remissão da doença.
Alguns sintomas são gerais. É muito comum que a pessoa apresente manifestações como cansaço, desânimo, febre baixa, emagrecimento e perda de apetite. Outros sintomas são específicos de cada órgão acometido, e podem ocorrer devido à inflamação na pele, articulações (juntas), rins, nervos, cérebro e membranas que recobrem o pulmão (pleura) e o coração (pericárdio).
“Outras manifestações podem ocorrer devido à diminuição das células do sangue (glóbulos vermelhos e brancos), devido a anticorpos contra essas células. Esses sintomas podem surgir isoladamente, ou em conjunto, e podem ocorrer ao mesmo tempo ou de forma sequencial. Crianças, adolescentes ou mesmo adultos podem apresentar aumento de volume dos linfonodos (ínguas)”, explana.
Manifestações mais comuns
- A) Lesões de pele: ocorrem em cerca de 80% dos casos ao longo da evolução da doença. As lesões mais características são manchas avermelhadas nas maçãs do rosto e dorso do nariz, denominadas lesões em asa de borboleta (a distribuição no rosto lembra uma borboleta) e que não deixam cicatriz. As lesões discóides, que também ocorrem mais frequentemente em áreas expostas à luz, são bem delimitadas e podem deixar cicatrizes com atrofia e alterações na cor da pele. Na pele também pode ocorrer vasculite (inflamação de pequenos vasos), causando manchas vermelhas ou vinhosas, dolorosas em pontas dos dedos das mãos ou dos pés. Outra manifestação muito característica no LES é o que se chama de fotossensibilidade, que nada mais é do que o desenvolvimento de uma sensibilidade desproporcional à luz solar. Neste caso, com apenas um pouco de exposição à claridade ou ao sol, podem surgir tanto manchas na pele, como sintomas gerais (cansaço) ou febre. A queda de cabelos é muito frequente, mas ocorre tipicamente nas fases de atividade da doença e, na maioria das pessoas, o cabelo volta a crescer normalmente com o tratamento.
- B) Articulares: a dor com ou sem inchaço nas juntas ocorre, em algum momento, em mais de 90% das pessoas com LES e envolve, principalmente, nas juntas das mãos, punhos, joelhos e pés, tendem a ser bastante dolorosas e ocorrem de forma intermitente, com períodos de melhora e piora. Às vezes também surgem como tendinites.
- C) A inflamação das membranas que recobrem o pulmão (pleurite) e coração (pericardite): são relativamente comuns, podendo ser leves e assintomáticas, ou se manifestar como dor torácica e dispneia. Caracteristicamente no caso da pleurite, a dor ocorre ao respirar, podendo causar também tosse seca e falta de ar. Na pericardite, além da dor no peito, pode haver palpitações e falta de ar.
- D) Inflamação nos rins (nefrite): é uma das que mais preocupa e ocorre em cerca de 50% das pessoas com LES. No início, pode não haver qualquer sintoma, apenas alterações nos exames de sangue e/ou urina. Nas formas mais graves, surge pressão alta, inchaço nas pernas, a urina fica espumosa, podendo haver diminuição da quantidade de urina. Quando não tratada rapidamente e adequadamente, o rim deixa de funcionar (insuficiência renal) e o paciente pode precisar fazer diálise ou transplante renal.
- E) Alterações neuropsiquiátricas: essas manifestações são menos frequentes, mas podem causar convulsões, alterações de humor ou comportamento (psicoses), depressão e alterações dos nervos periféricos e da medula espinhal.
- F) Sangue: as alterações nas células do sangue são devido aos anticorpos contra estas células, causando sua destruição. Assim, se os anticorpos forem contra os glóbulos vermelhos (hemácias), vai causar anemia; contra os glóbulos brancos, vai causar diminuição de células brancas (leucopenia ou linfopenia) e, se forem contra as plaquetas, causará a diminuição destas (plaquetopenia). Os sintomas causados pelas alterações nas células do sangue são muito variáveis. A anemia pode causar palidez da pele e mucosas, além de cansaço, e a plaquetopenia poderá causar aumento do sangramento menstrual, hematomas e sangramento gengival. Geralmente, a diminuição dos glóbulos brancos é assintomática.
De que forma é possível descobrir se está com a doença?
A especialista assevera que o diagnóstico é feito através do reconhecimento pelo médico de um ou mais sintomas mencionados, associados à presença de alterações laboratoriais características da doença. Os exames de urina e de sangue são úteis no diagnóstico e na definição da atividade de doença.
“Muito embora não exista um exame que seja específico do LES, a presença do exame chamado FAN (fator ou anticorpo antinuclear), principalmente com títulos elevados em uma pessoa com sinais e sintomas característicos de LES, permite o diagnóstico com uma boa dose de certeza, pois está presente em mais de 95% dos lúpicos. É importante salientar que encontramos a presença de FAN em indivíduos saudáveis e portadores de outras doenças autoimunes não reumatológicas”, garante.
O lúpus possui cura?
Rosana Soares diz que ainda não se conhece a cura do LES, “mas dispomos de um arsenal terapêutico bastante amplo que possibilita longevidade com qualidade de vida aos portadores da doença.” A médica elucida que se trata de doença crônica que evolui com períodos de atividade e de remissão, neste último, a pessoa fica bem, sem qualquer sintoma, mas isso não significa que o distúrbio imunológico que desencadeou o LES foi corrigido definitivamente.
“Desta maneira, o ideal é que consideremos o LES como uma doença crônica, que pode ficar sem sintomas, mas que sempre vai necessitar de um acompanhamento médico contínuo”, orienta.
E com relação ao tratamento?
O manejo global do portador de LES inclui educação sobre a doença, fotoproteção, manutenção de um bom condicionamento físico, vacinação adequada respeitando as contraindicações de imunização em estados de imunodepressão, e identificação e tratamento de fatores de risco para doenças cardiovasculares.
“Existem muitos medicamentos aprovados para o tratamento de lúpus, como corticosteróides, antimaláricos, imunossupressores e drogas imunobiológicos. A chave para decidir a terapia mais apropriada está na cuidadosa avaliação do órgão envolvido e da severidade da atividade da doença, assim como na definição de estratégias para monitorizar efeitos adversos e toxicidade decorrentes do uso destes medicamentos.”
No tocante à propensão, quem tem maior probabilidade de contrair a doença? É possível evitá-la?
“Não existe uma causa estabelecida e não existem maneiras conhecidas de impedir o aparecimento da doença. Sabemos que fatores genéticos, hormonais e ambientais contribuem para seu desenvolvimento. Porém, não temos como evitá-los”, enfatiza.
É possível viver bem?
“Claro que sim! Atualmente, temos muitos medicamentos e terapias disponíveis para o tratamento do LES, que possibilitaram um aumento da sobrevida e da qualidade de vida aos portadores da doença. O objetivo geral dos cuidados com a saúde é permitir o controle da atividade inflamatória da doença e minimizar os efeitos colaterais dos medicamentos.
Algumas medidas são cruciais para alcançar este objetivo, como a prática regular de atividade física, atenção com a alimentação, procurando alimentos mais saudáveis que potencializem o efeito anti-inflamatório, como a cúrcuma, por exemplo, evitando os industrializados e muito condimentados. Parar de fumar também é uma orientação que devemos lembrar”, finaliza.
Fatores psicológicos
A exemplo das duas últimas semana, a professora doutora Lúcia Helena Hebling Almeida, psicóloga clínica com consultório em Rio Claro e professora convidada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), discorre a respeito do fatores psicológicos envolvendo a doença. Segundo ela, qualquer dor é um sinal de alerta de que algo não vai bem conosco.
A dor tem uma característica muito subjetiva, além do aspecto físico. As pessoas acometidas com lúpus têm muitas dores, que chegam a se tornar crônicas, durando longos períodos.
Sendo assim, a dor crônica e intensa pode levar a um enfraquecimento físico e psicológico. “Isso pode levar a muita frustração e consequente aparecimento de tristeza, impaciência e irritabilidade consigo mesmo e com os outros, que a própria dor provoca. Assim, temos prejuízos como uma tendência ao isolamento social, e a renúncia a atividades cotidianas como trabalhar, sair com amigos, viajar, etc.”, avaliza.
A psicóloga diz que há pesquisas que relacionam as doenças autoimunes como uma “quebra do curso normal da vida, que modifica o ritmo e a própria existência”, o que gera medo, ansiedade, angústia, limitação.
“Por outro lado, pode levar a uma oportunidade de profunda reflexão, buscar uma nova orientação na vida, rever crenças e valores, buscando um novo sentido, um novo direcionamento, e descobrir um potencial de superação”, destaca.
Lúcia Helena afiança que há uma profunda relação entre psique e corpo que os sintomas expressam e o processo psicoterapêutico pode contribuir muito para elucidar questões inconscientes e para amenizar o sofrimento psicológico do adoecer.
“Apesar do reconhecimento da importância do acompanhamento psicológico dos pacientes com lúpus, pelas dificuldades e comorbidades (como depressão, alterações no sono, cognição, fadiga e psicomotricidade), os encaminhamentos médicos ao tratamento psicológico e relatos de intervenção conjunta ainda são escassos”, encerra.