Sid Wallace era daqueles que preferia um belo pingado e um pão com margarina, na chapa, logo cedinho. Hábito adquirido na infância, quando o pai, o acordava nas manhãs de domingo para acompanhar as corridas de fórmula 1, na época em que o Copersucar do Fittipaldi comia poeira. Sid sonhava com o dia, ou melhor, a manhã, em que ouviria o narrador Luciano do Valle soltar para o nosso Don Quixote das pistas o seu indefectível: “Sensacional! Esplêndido, esplêndido!” da mesma forma como fazia a cada defesa miraculosa do goleiro Emerson Leão, ao defender as cores da Sociedade Esportiva Palmeiras ou do selecionado brasileiro.
Voltemos ao café da manhã de Sid Wallace. Demorou até que sua esposa, a eficiente e dedicada jornalista Nancy Nilbon se acostumasse com as manias do maridinho. Entre a vida de namoro e a de casado há uma Visconde do Rio Claro que as separa. Mas qualquer diferença era resolvida à noite, na penumbra do quarto, (Sid às vezes esquecia-se de pagar a conta de luz) sobre o inigualável colchão King Star, com molas ensacadas, de modo que quando um se mexe o outro não sente. Mas de onde será que o redator publicitário tirou essa pérola: quando um se mexe o outro não sente. Colchão pra dormir, só pode ser! Logo não haverá mais herdeiros nos domínios do rei Luis mãozinha.
Outro conflito existencial de Sid, era a sua relação nada amistosa com os fios. Sim, os fios de eletricidade. Desconfiava que tal antipatia era dos tempos em que, menino ainda, sequer alfabetizado, submetia-se periodicamente a sessões de eletro choque, e exames eletro encefalograma, na cidade vizinha, para tratar-se de um foco irritativo no lobo frontal esquerdo, diagnosticado a partir das convulsões cerebrais que sofrera e que o faziam debater-se e virar os olhos, espumar pela boca, uma performance invejável da qual ele não se lembrava, mas não podia, jamais pudera esquecer dos fios, grudados na sua cabeça, a partir de uma substância gelada e pegajosa; ele deitado na maca, ao lado da parede, naquela saleta escura, sem vida, a voz doce e meiga da enfermeira, pacienciosa e bonita, a atender e cuidar dele, prometendo-lhe que não sentiria dor, tomando a sua mãozinha trêmula, não por causa do medo, mas, da expectativa quanto ao que pudesse acontecer.
Os fios, aquele emaranhado de fios, do seu quarto/escritório, o seu refúgio, onde, agora, adulto, dedicava-se a trabalhos freelance, a corrigir as provas dos seus alunos, e entregar-se às suas leituras e ouvir as suas músicas, na aconchegante cadeira do papai que herdara do finado Sidão.
Os fios que saiam do computador, do carregador do celular, dos aparelhos de som e do dvd, do televisor, do toca-discos. Sim, o nosso herói era um sujeito antenado às novidades da tecnologia, mas com um pé no passado para onde objetos de qualquer natureza dos tempos idos o transportavam.
Todo final de ano, além do exame de consciência ao qual se submetia desde que se deparara com uma instrução de Santo Agostinho em O Livro dos Espíritos, o seu livro de cabeceira, tinha também que convencer Nancy, sua esposa, a não livrar o seu quarto/escritório do peso daquelas inúmeras reminiscências inúteis, em forma de objetos, suvenires, papéis e aparelhos eletrônicos, alguns esquecidos em algum canto da prateleira, embaixo da cama, na gaveta da estante, em algum lugar, geralmente ocultando a existência de outros mais aproveitáveis.
Fios, os emaranhados da vida sentimental. Fios que prendem e libertam. Às vezes tinha vontade de interromper a conexão daqueles muitos fios que conectavam sua vida ao passado. Ficara pensando muito nisso, depois que recebera a visita técnica do seu provedor de internet, e experimentara uma gostosa sensação de liberdade, quando ouvira do rapaz, banca de boy, moreno fortinho, cabelo raspadinho dos lados e espetado no alto da cabeça e óculos escuros: “Precisa trocar o rádio da torre de conexão: ele recebe, mas não transmite mensagens, embora a velocidade esteja boa. Precisa trocar, tio. Pode crer”. E dissera tudo isso sem olhar uma única vez para Sid, comportamento habitual das pessoas jovens: comunicar-se sem o fio da expectativa que conecta dois olhares.
Queria dizer em outras palavras que Sid poderia manter-se no mundo real sem nenhum sentimento de culpa. Aquele mundo que não possui fios, que não sejam os que ligam o ser humano aos sentimentos, às emoções repentinas a partir das quais se realizavam todos os dramas da vida.
Deliciou-se com a ideia. E quisera comunicá-la imediatamente à Nancy o seu achado, mas, antes que pusesse a mão na maçaneta da porta, desistiu de fazê-lo. Com tristeza percebeu que os fios sentimentais que o ligavam a esposa, deviam estar danificados, porque, naqueles últimos tempos, a conexão entre eles, não estava lá muito eficiente. As preocupações do dia a dia, a necessidade de se manter ativo e indispensável no ambiente de trabalho de cada um, somadas às frustrações bem maiores que as satisfações, ocupavam a atenção e o interesse de ambos, mais que qualquer outra coisa.
De algum modo, os fios terra que os ligavam ao êxito profissional, lhes pareciam indispensáveis à felicidade que juntos acreditavam ter construído.
Cortá-los poderia significar o fim daquela felicidade. Como poderiam manter o mesmo padrão de vida tão prazeroso e reconfortante, se trocassem a certeza pela expectativa. Mas a realidade da vida humana, Sid, enfim percebera era semelhante àquela encontrada na natureza, é feita de estações, ciclos, que começam e terminam, e recomeçam. Lembrou-se que diante de um fio danificado há duas opções: tenta-se remendá-lo, ou corta-se o fio e compra-se outro. Sid não estava mesmo disposto a remendar aquele fio que o ligava a Nancy e menos ainda ao que o ligava a sua vida profissional. Sid estava decidido também a não comprar outro fio. Queria aprender finalmente a viver sem eles.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução Internet