Não se sabia por qual motivo, mas, o fato é que o sr. Hans Castorp tinha por hábito fazer suas meditações matinais no Jardim Público. Sentava-se em um daqueles bancos imundos diante de seu amigo índio, com o qual, por vezes, confabulava, e, por outras, atirava pedrinhas no lago sempre seco, e sem que ninguém soubesse. Enquanto se entregava às meditações, segurando o terço com a mão direita, deixava que os olhos percorressem o entorno. Não havia muito o que admirar. Exceto a pujança das árvores centenárias e o novo plantio de mudas na erma do seu não menos amigo o senador Alfredo Ellis. Que história fascinante a daquele sujeito. Fora lendo as colunas do saudoso Midiel neste mesmo jornal e neste mesmo espaço, hoje ocupado por um tal escriba que o sr. Hans Castorp tomara conhecimento dos fatos. Havia outros fatos não menos interessantes que o finado Midiel, contabilista de ofício e cronista por vocação, relatara ao longo dos anos em sua coluna semanal.
Nosso discreto e metódico personagem, o sr. Hans Castorp, agora se lembrava das pipocas que comprava antes das sessões de cinema no cine Excelsior, com o simpático sr. Amadeu, que diziam, era exímio dançarino, a puxar sempre a fila da poleneise dos bailes de gala da Sociedade dos Veteranos.
Em cada direção que o sr. Castorp, protestante, filho de alemães e ex-professor, olhava naquele Jardim, deparava-se com uma lembrança. Fora naquele mesmo banco, sentado no colo de seu pai, há exatos 65 anos, que descobrira a origem de seu nome. O pai, literato e amante da boa prosa, tomara o nome emprestado de um personagem criado por seu autor favorito, o alemão Thomas Mann.
Dominado por tais lembranças, ficaria sentado ali, naquele banco, até que a hora avançasse o suficiente para aumentar a temperatura. Trazia consigo o livro de um autor brasileiro que muito admirava. E a única pessoa com a qual poderia conversar agradavelmente sobre a obra de Lúcio Cardoso era a sua querida amiga Ingrid, secretária aposentada de um renomado escritório de advocacia, e poliglota. Ingrid lhe contara que fora através de Clarice Lispector, da qual era fã e leitora assídua, que descobrira a obra incomparável de Lúcio Cardoso, este sim, segundo ela, um romancista de verdade, como poucos neste Brasil tão avesso à leitura.
Naqueles dias, porém, o romance O Viajante tornara-se um desafio para o sr. Castorp. Gostara muito de Crônica de uma casa assassinada, mas não conseguia ir além de 50 páginas do volumoso O Viajante. Qual seria o segredo para se deixar entreter pela leitura de tão instigante livro?
Fazia-se essa pergunta, quando dele se aproximara o seu amigo Heraldo, vindo do almoço saboroso no restaurante ali perto. Por vezes, se encontravam, se não fosse no restaurante, ali no Jardim. Heraldo gostava de contar histórias e Hans Castorp gostava de ouvi-las.
Já era quase 10 da manhã. E por eles passara com andar habitual, cadenciado, o jornal e o guarda-chuva, debaixo do braço, o Sr. Paulo, que fazia excursões para Aparecida do Norte, Rio de Janeiro, Salvador e outros lugares aprazíveis. Torcedor do Rio Claro FC não ia lá de muito bom humor naqueles dias o Sr. Paulo, também conhecido entre seus familiares por Tio Álvaro.
O amigo Heraldo se foi em direção à estação de trens. E Hans Castorp percebeu que índio Indaiá, naquele dia, não estava disposto a muita prosa. Tão pouco o senador. Talvez desse melhor sorte com o poeta Bilac mais adiante. Mas a ideia de tomar um suco de laranja no Seu Moço lhe parecera mais interessante.
Antes de levantar-se e pegar suas coisas, Hans Castorp deu uma última olhada na direção do lago da Diana Caçadora. Num ímpeto de esperança, teve a impressão de avistar a querida Ingrid vindo em sua direção, em meio a outras pessoas; vinha toda exuberante no seu jeito simples, vinha naquela sua saia marrom escuro que lhe caía tão bem, a blusa branca, discreta e elegante e os cabelos soltos ao vento, à altura dos ombros. Um pouco mais perto, ao avistá-lo, certamente lhe sorriria muito satisfeita por encontrá-lo naquela manhã. Um pouco mais, porém, e os olhos de Hans Castorp cheios de brilho e expectativa foram se apagando como o sol atrás das nuvens. Logo, encontraram o chão e assim permaneceram por um tempo. O senhor que vendia sorvetes no Jardim Público passou empurrando com dificuldade seu carrinho, e tão envolvido por suas meditações, Hans Castorp não escutara, quando este lhe dissera “bom dia”.
Por Geraldo Costa Jr./ Imagem ilustrativa/Reprodução Internet