São os teus olhos, querida! Foi o que ele disse, e bem se lembrava disso, naquela manhã, ainda bem cedo, quando saíram a caminhar de mãos dadas pela praia. Ela sorriu, tímida, como que achando graça na resposta dele ao seu elogio.
Lucas sabia muito bem o quanto havia lhe custado tomar coragem para cometer a ousadia de tocar a mão de Cecília. Aquela mão que habilmente fazia surgir aquelas pinturas que ele tanto admirava. Uma mulher de muitos predicados, dissera-lhe o amigo, quando lhe sugerira aproximar-se da jovem estudante de Belas Artes, que ambos admiravam à distância na confeitaria de um amigo em comum. Mal sabia Lucas que sua vida iria mudar completamente, a partir daquela tarde de 14 de julho de 1962.
E muitos anos haviam se passado desde aquele dia. Ele, aspirante a doutor, sedento por reparar injustiças com a força da lei. Mal sabia que na sua velhice iria ver a própria Justiça pisar em cima das leis. Quanta angústia isso lhe causava! Quanta decepção, por ver amigos que tanto admirava enveredar pelo caminho sem volta da mentira e da corrupção.
Agora, aos 70 anos, e doente, já não tinha força para contestar, para levantar-se contra aquele estado de coisas que abominava. E por isso passava os dias a lamentar a ausência de Cecília, que não combinara o trato e voltara para a casa do Pai antes dele.
Amigos, já não os tinha. Uns haviam se mudado para outra cidade e outros haviam se recolhido para dentro de seus lares dos quais pouco saíam. Em verdade, quase nunca saíam.
Lucas ainda mantinha o hábito de comprar jornais na banca do Jardim Público todas as manhãs. Passava, depois, na padaria, para comprar os pães quentinhos. E não se esquecia da comida do gato e da calopsita. Das suas, vivia esquecendo. Assim como os remédios de uso contínuo.
O vizinho, sempre carrancudo, de mau humor, dia desses, num rompante inesperado de simpatia, lhe perguntaria se iria ao jogo. Jogo? Que jogo? Ora, o time aqui da cidade vai disputar o Paulistão! Ah, sim! É verdade… Talvez. Talvez eu vá, quem sabe. Foi a resposta.
Às quartas-feiras, à noite, tinha por hábito, assistir a uma palestra na casa espírita lá da rua 10 e tomar um passe. Saía de lá, renovado. Isso lhe fazia bem. E por sugestão de um conhecido estava agora lendo um livrinho muito bonito e bastante explicativo, porque lhe trazia resposta para suas indagações de como era a vida do lado de lá. Queria muito saber como vivia agora Cecília, que ele acreditava havia se tornado um anjo.
Nosso Lar. O seu lar, Cecília, pensara Lucas, ao fechar o livro naquela noite e apagar a luz para dormir. Antes que o sono viesse, ficou a lembrar dos momentos únicos vividos com a doce e amada Cecília. Parecia vê-la ao seu lado, à beira da cama, como a convidá-lo para um passeio. Tentou tocá-la, estendendo-lhe a mão, mas não pode. Nem por isso sentiu-se triste. Porque, no momento seguinte, Cecília aproximou-se dele, abaixando-se e beijando-lhe o rosto. Quis acreditar que fosse verdade. E, ao fechar os olhos, naquela noite, percebeu que de fato era.
Por Geraldo Costa Jr. / Imagem ilustrativa: Reprodução