Fred Nilbon lembrava-se constrangido da primeira vez que fizera uso daquela porcaria. Chegara tarde da escola naquela noite. Os pais já haviam se retirado para o quarto, e a casa, a partir daquele instante lhe pertencia. Fora até os fundos da casa, o mesmo lugar, onde estivera com a irmã pela última vez. Apanhou no bolso da jaqueta, a folha de caderno onde havia embrulhado uma porção do pó branco maldito que havia ganhado de um sujeito na saída da escola.
Com isso você pode tudo, foi o que dissera o sujeito.
Escrever poesia, também?
Poesia, música e o que der na cabeça.
Quanto pago por isso?
Nada, por ora.
Sério?
Sério.
Então sorriu, desacreditando, mas segurando o produto firmemente com a mão.
Experimente. Veja se é bom.
Se não for, eu não pago. E se for, eu volto.
Pode crer.
A primeira sensação foi ver o mundo girar em sua volta, como se estivesse no epicentro de um terremoto. O som ambiente foi ficando longe de sua percepção. E faltara-lhe de repente o sentido de profundidade em relação ao espaço onde se encontrava. Os objetos em torno de si pareciam sair do chão e se movimentar. E o chão, sob os seus pés, parecia não existir. Viu-se como se afastado de seu corpo. A atmosfera tornou-se sufocante, o ar irrespirável. As mãos haviam perdido o tato, e tinha a sensação de que podia penetrar as coisas e os objetos ao contato das mãos. Perdeu então os sentidos. E quando retornou a si, estava sentado com as costas na parede fria dos fundos da casa, sob os olhos atentos da irmã mais velha, que já naquele tempo havia assumido a heroica missão de cuidar dele, porque os pais já haviam desistido de fazê-lo.
O que deu em você?
Demorou até que ele esboçasse uma resposta.
Não sei. Nada… Eu não sei. Estou confuso.
Depois de observá-lo por algum tempo, desconfiada, a irmã o ajudou a se levantar e a caminhar até o quarto. Tirou-lhe a roupa, e fez com que se deitasse debaixo da coberta. A noite já se despedia e a tímida claridade da manhã anunciava a chegada de um novo dia, quando ele finalmente conseguiu fechar os olhos e adormecer.
Passados muitos anos…
Os pais haviam morrido, a irmã havia casado, perdido um filho e se separado. E ele…
Nunca lhe incomodara que a vida jamais houvera sido como ele desejara no tempo em que ele e a irmã iam aos bares, aos sábados, para beber e jogar sinuca. A irmã, já em crise conjugal, entrava numa conversa promissora com qualquer boa pinta que por lá aparecesse. E, ao final da noite, à hora de voltar pra casa, antes que o marido retornasse do plantão médico, cabia a ele, o irmão, arrancá-la dos braços do idiota sem noção que pretendia levá-la para um beco escuro qualquer.
Lembravam-se disso, às risadas, enquanto esperavam por atendimento na sala de curativos da unidade de saúde, onde ele, uma vez por semana, ia remendar os trapos no qual haviam se tornado os seus pés.
Tinha agora, 40 anos e a irmã 48. E era ela que o conduzia na cadeira de rodas, que ele conseguira em doação, da parte de uma ouvinte do programa sertanejo de todas as manhãs, apresentado por um velho amigo seu.
O que não faz a diabetes na vida de um homem, perguntava-se toda vez que ficava sozinho no escuro do seu quarto. Quase cego. Quase sem o movimento das mãos. Sem forças nas pernas para manter-se de pé. E continuava a tomar os remédios, a fazer os exames periódicos, a se privar das delícias da culinária que tanto apreciava.
A última novidade, revelada pelos exames periódicos que fazia na clínica de sua confiança, era que agora sofria também de hipertensão. O que em outras palavras, significava mais remédio acrescidos à sua extensa listinha. Não fosse a irmã assisti-lo em suas necessidades básicas, talvez já tivesse morrido.
Havia momentos de extrema solidão no escuro do quarto, que a derradeira hipótese tragava a sua esperança. Mas qual era a sua esperança? Doente, sem cura, aos 40 anos, caminhando para um final indigno e tão diferente do que imaginara para si. Não havia esperança. E se havia, não era maior que a cinza de uma bituca de cigarro se apagando aos poucos no cinzeiro.
Olhando pela janela da sala de curativos, percebeu que a chuva, lá fora, havia cessado. As nuvens, se dissipado, e uma réstia de luz, permitiu um pouco de claridade naquela manhã. Pediu que a irmã o levasse até lá fora para ver o sol. Pediu com insistência diante da recusa inicial dela.
Você vai perder a sua vez, ela disse, preocupada com a demora no atendimento.
E ele, olhando para as pessoas que o observavam, respondeu: Não me importo, querida. Eu já perdi tantas coisas, que mais essa não fará diferença alguma.
Passaram pela sala de recepção, e os olhos das atendentes se voltaram todos para ele, o moço sorridente e brincalhão que as visitava uma vez por semana.
Finalmente na calçada, lá fora, pediu que a irmã lhe acendesse um cigarro, o que ela fez com alguma relutância. Depois, pediu que ela o colocasse na direção do sol. Acomodou-se na cadeira de rodas, segurando o cigarro e fez menção de dar uma tragada, mas não chegou a fazê-lo. Manteve os olhos abertos, o mais que pode, em direção ao sol, ainda fraco, que começava a despontar entre as nuvens, naquela manhã de outono. E ficou assim um tempo, até que a irmã chamasse por ele, sem que pudesse ouvi-la.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução Internet