O chão estava molhado e as paredes úmidas. Héctor tinha o livro sobre o peito, tão adormecido quanto ele. Era noite. O gato, inquieto, circulava pela casa, percorria todos os cômodos à procura de ração e água. Miava sem parar, insistentemente. Mas Héctor sequer fazia menção que fosse acordar. Estava ferrado no sono. Havia exagerado no vinho.
Lá fora, as folhas orvalhadas do jardim da casa eterna pareciam ganhar vida. Mês de maio, o primeiro dia. Na sala, uma vela derretida, consome o resto de esperança de que a luz pudesse voltar logo pela manhã. Os últimos acordes de uma festa por terminar, ouve-se ao longe. Uma conversa ríspida na calçada, entre duas pessoas, fazem o gato voltar os olhos em direção à janela da sala, que dava para a rua.
A sala bagunçada, escura, objetos pelo chão, roupas e calçados espalhados, livros e revistas sobre a mesa, garrafas vazias pelos cantos
Tantas vezes Héctor se perguntara aflito e apreensivo, cheio de medo e dúvida: o que virá depois? Depois que a solidão vier, o que virá? Onde estará o lápis, o café no copo, o papel amassado? E aquele olhar voltado para o meu, onde estará? Aquele terno e doce olhar, onde tantas e tantas vezes, encontrei refúgio. Onde tantas e tantas vezes, eu, apenas um garoto, deixei que a realidade consumisse a esperança. E o fiz deliberadamente, como flor que se amassa entre os dedos. Sem saber muito bem ao certo, porque o fazia.
O que virá depois? Nem nos seus melhores sonhos Héctor encontraria resposta. Mesmo que uma estrela cadente passasse brilhando no céu para morrer no instante seguinte, em lugar incerto e não sabido. Uma estrela riscando o céu, rasgando a escuridão e partindo o olhar em dois.
Então, seria assim, mais uma noite daquelas. Até que uma réstia de luz saltasse da janela da sala, pela manhã, para dentro da sala.
E essas coisas, sem nenhuma importância, ficariam na lembrança, da pobre alma bichana que a tudo presenciara, atento e calado.
Héctor voltaria dos seus piores pesadelos. Voltaria voando, voando para dentro de si mesmo, aquele corpo magérrimo, alquebrado, doente, consumido pelo tabaco e pela bebida. Voltaria penetrando no mais profundo de si mesmo. Perdendo-se no mar escuro de incertezas que era a sua mente.
Talvez, se perguntaria, quando pudesse enfim, abrir os olhos: O que virá depois? O chão da sala estaria molhado, como no filme de Tarkovski, as paredes úmidas. As folhas orvalhadas caídas na calçada, em frente da casa onde morava e que um dia fora de seus pais.
Vozes. Héctor ouviria vozes, sem saber de onde vinham e porquê. A tarde já se despede. Ninguém caminha pela rua deserta, abandonada e sem vida. Sem que haja olhares e vozes. A rua repleta de medo e solidão. As cortinas das casas estão fechadas. O quarto escuro, esquecido, ao menos por um tempo, algumas horas. E Héctor fechado em si mesmo, deitado no sofá da sala, incapaz de um movimento. O que virá depois? Jaz o lenço branco, estendido na janela. Prenúncio, de paz, não sei.
Por Geraldo Costa Jr. / Imagem ilustrativa. Foto: Reprodução Internet