Não havia mais nada a fazer ali. Treze anos haviam se passado. Agachado diante do túmulo, olhava através da portinhola, aquele espaço vazio, profundo, úmido, entre as gavetas emparedadas. Aquele mesmo espaço presente em seus piores pesadelos. Tantas vezes vira-se ali dentro, esquecido e sufocado, sabendo que dali não sairia.
As quatro gavetas do túmulo já estavam ocupadas. E a última fora há exatos 13 anos, por seu pai. O mesmo que construíra às suas próprias expensas aquele túmulo bonito e bem arrumadinho. Comprara o terreno, quando isto ainda era possível, naquele cemitério municipal. Contratara o pedreiro. E pagara por tudo do começo ao fim. Olavo tem dinheiro, diziam. Da parentela é o que mais tem.
O pai sempre pensara mais nos outros do que em si mesmo e na própria família. Por isso às vezes odiava o pai. Pelas decisões erradas que tomara.
Agora, por exemplo, Agripino Rossi sabia que, se acaso morresse, ou, quando morresse, muito provavelmente, seria sepultado na parede, como tanta gente, naquele maldito cemitério. Não tinha família e nem amigos para se preocuparem com isso. A família que formara não dera certo. A esposa morrera depois de abandoná-lo e a filha tornara-se um filho, egoísta, insensível e que não demonstrava pelo pai nenhum afeto ou carinho, nada. Dos irmãos, nada poderia esperar. E sempre fora assim, desde que se conhecia por gente. Muito na deles e para os seus. E dos amigos, podia contá-los nos dedos e era bem provável que, por força das circunstâncias, deixariam este mundo antes de Agripino.
Portanto, nosso ilustre jornalista, redator policial dos mais lidos não teria quem lhe conduzisse o caixão até a última morada. Deus haveria de providenciar duas ou três boas almas para o derradeiro ato de misericórdia. Mas, acontece, que Agripino Rossi, simplesmente não acreditava nestas coisas.
A sirene de repente tocou à entrada do cemitério. Hora de se retirar. Esquecer as lembranças amargas e doces que o pai lhe causava. Nunca mais poria os pés naquele cemitério. Lugar triste, mas, onde, ironicamente encontrava um pouco de paz. Queria muito apagar a figura do pai de sua memória, como se nunca houvesse existido. Não merecia o incômodo e a tristeza que a lembrança daquelas cenas lhe causavam. Descobrira muito tarde que o pai nunca fora de verdade aquilo que demonstrava. Da decepção ao desprezo, fora um passo. E o passo seguinte, seria a indiferença. Só lamentava que o pai já não estivesse presente para lidar com a sua vingança.
A sirene tocou de novo e Agripino Rossi ainda estava diante do túmulo de seu pai. A tarde já ia se despedindo e o dia morrendo mais cedo como era comum nos meses de maio.
Estava decidido a não voltar para casa. Não abriria a garrafa de vinho Girola que comprara naquela semana na adega do seu amigo Ferrucio. Não acenderia o cachimbo com o fumo do pacote guardado na gaveta da estante da sala, ainda intacto. Não botaria os discos pra tocar. E nem enfrentaria o seu mais terrível instrumento de tortura, o espelho. Talvez, botasse uma folha no carro da máquina de escrever e à luz do abajur, a janela do quarto aberta, ouvindo o latido dos cães ao longe, talvez, se resignasse a suportar de maneira lúcida e racional as horas seguintes, até que viesse um novo dia, e trouxesse, talvez, um pouco de esperança.
Deixara finalmente o cemitério. Cruzara no caminho com o último cortejo daquele dia, acompanhado por meia dúzia de pessoas. Atrás de todos, uma senhora de meia idade, amparada por uma jovem, caminhava arrastando os pés, e chorava copiosamente a dor de perder o seu único filho. Não perdê-lo para a morte, porque isso é carta marcada no jogo da vida. Mas, perdê-lo para a rota de fuga que muitos acham de buscar, na vã esperança de suportar suas dores e seus tormentos.
Escrevera sobre o rapaz na edição daquela terça-feira do jornal para o qual trabalhava. Executado por dívida de drogas, e apenas 20 anos vividos. Talvez apodrecesse no inferno. Ao mesmo tempo que a mãe, morreria lentamente, um pouco mais a cada dia, entre culpa e medo e arrependimento.
Agripino deixou o cemitério finalmente, passou ao lado do monumento em homenagem ao soldado desconhecido e caminhou até a calçada, onde ficaria à espera do Uber. Não estava muito disposto a voltar para casa. Porque mesmo passados 13 anos, o pai ainda estava por lá. Em cada móvel velho e deteriorado, em cada canto esquecido daquela casa. Na sala, principalmente, onde assistia ao futebol e aos filmes, e ouvia suas músicas e tomava suas doses generosas de whisky. E lia seus livros, jornais e revistas. Tudo naquela casa, enfim, tinha a forma, a cor e o cheiro da morte. E Agripino Rossi, agora, mais do que nunca, desejava viver. Ao menos um pouco. Saber, enfim, o que vem a ser isso exatamente: viver.
Por Geraldo Costa Jr. / foto: Imagem ilustrativa/Reprodução.