Demorou até que se convencesse a abrir a porta e atravessar a rua. Mesmo assim, se conteve por um ou dois segundos na calçada, antes que fosse em direção àquele homem. Tinha observado que, todos os dias, há uma semana exatamente, ele parava sempre naquele mesmo horário para abrir os sacos de lixo à procura de algo que lhe servisse. Da primeira vez deixara os sacos abertos e não levara nada. Da segunda, em diante, fechara os sacos e levara algo consigo. Pouca coisa. Frascos vazios de desinfetante e caixas de leite igualmente vazias.
O Dr. Ariel dissera bom dia, ao se aproximar daquele homem, que, todavia, preferiu ignorá-lo, tão entretido estava com a árdua e inglória tarefa de encontrar alguma coisa em meio àquele lixo que pudesse servir para o seu sustento.
Posso ajudá-lo? – pensou dizer. Mas, se conteve. Porque diante de uma situação como aquela, nunca sabia exatamente quais as melhores palavras a usar ou se elas pudessem significar alguma coisa de bom na vida de uma pessoa que lida com a miséria e a frustração diariamente.
Um pouco à distância, de modo a não incomodar e não constranger ficou a observar aquele homem. Nenhum pensamento lhe ocorria. Nenhuma palavra vinha à boca. A vontade de ajudar, de colocar-se à disposição não era maior que a sua timidez. Mas, deveria esforçar-se. E o fato de aproximar-se daquele homem, já lhe dera um alento. Pois adiara por várias vezes aquela atitude, que considerava indispensável à sua pretensão de tornar-se uma pessoa melhor.
A um metro de distância, não mais, pode observar melhor aquele homem sofrido e calado. Nem era tão velho assim. Na verdade, nada velho. Tinha, talvez, 40 anos. Olhos azuis e os cabelos, bem curtos, embranquecidos acima das orelhas e já escassos no alto da cabeça. O rosto tinha rugas e cicatrizes. As mãos estavam sujas e machucadas, as unhas estragadas. A roupa que vestia cheirava mal e o par de tênis que trazia nos pés, provavelmente deveria tê-lo encontrado na rua. A sola do pé esquerdo, descolada na parte de trás. Mas nada parecia incomodá-lo. Estava provavelmente acostumado ao desconforto, às dificuldades e à rotina humilhante daqueles dias que lhe pareciam intermináveis.
Tudo demora a passar quando é ruim. Quando causa sofrimento. Lição da vida que o Dr. Ariel aprendera desde cedo. Nascera de família pobre. O pai, servidor público, viúvo, ganhava uma miséria pra varrer as ruas do centro da cidade, todas as manhãs. Apanhar do chão as folhas das árvores enormes do Jardim Público. Vez por outra ganhava do prefeito um maço de cigarros e um tapinha nas costas. Bom dia, Ariel! Como estás hoje? O prefeito, bom sujeito, era versado em gramática, falava fácil e difícil, mas tão bem de causar inveja em qualquer um. Um sujeito de hábitos comedidos. Inclusive, para dar aumento aos empregados da Prefeitura. Aquele eram tempos difíceis, dizia o senhor prefeito. O mundo ainda vive os efeitos da segunda guerra.
Mas o filho de Ambrósio, o menino Ariel, não estava interessado naquele tempo em saber sobre os fatos internacionais de grande repercussão que os jornais traziam diariamente. Estava começando a aprender as primeiras letras, e já sonhava ser advogado. Pra defender os interesses das pessoas pobres, e negras como ele, confessara ao pai, certa ocasião.
Passados 40 anos, a vida era outra, mudara completamente. O Dr. Ariel, era um advogado respeitado por seus colegas de profissão e muito requisitado, especialista nas questões trabalhistas. Havia ganhado muitos processos, o que inflava o seu orgulho e ambição para exercer sempre e cada vez melhor o ofício que abraçara. Era um homem bem sucedido. Naquele ano quitaria a sua casa financiada. E ao final do ano seguinte, iria aposentar-se definitivamente, mas, continuaria trabalhando como voluntário para associações sem fins lucrativos e ongs que tivessem por objetivo amenizar ao menos um pouco o sofrimento alheio.
Espírita convicto, o Dr. Ariel se esforçava para honrar os postulados da doutrina de Kardec, que abraçara desde muito jovem. Participava das atividades doutrinárias e assistenciais de uma instituição localizada na periferia da cidade. Gozava do respeito e do afeto dos seus pares. E também de sua família e de seus vizinhos. Só não entendia o porquê daquele vazio existencial a sufocar-lhe o peito, como que lhe cobrando por uma atitude que não sabia exatamente qual fosse.
Desde que passara a observar aquele homem todos os dias, em frente à sua casa descobrira finalmente qual era a tal atitude que a sua consciência lhe cobrava. Era algo muito simples, embora desafiador. Precisava tornar-se uma pessoa melhor. E, no seu caso, isso consistia em ir ao encontro do sofrimento alheio e colocar-se à disposição. E não esperar que o sofrimento alheio viesse até ele para pedir-lhe atenção e ajuda. Faltava-lhe, contudo, coragem para vencer a timidez que era própria de sua natureza. Decorridos alguns minutos que estava parado a observar a certa distância aquele homem, Ariel já pensava em dar meia volta, atravessar a rua e voltar para casa, quando, então, o homem, dirigiu-lhe finalmente o olhar. E lhe sorriu. Precisando de alguma coisa, doutor? Surpreendeu-se com a pergunta, pela qual jamais esperava. Respondeu que não, meio sem jeito, inibido, evitando olhar para o homem, tão envergonhado se sentia. É que já está aqui a alguns minutos me observando e não disse nada até agora. Fiquei preocupado.
Constrangido, Ariel abaixou a cabeça e se desculpou: Queira me perdoar. Estava me sentindo só. Achei que pudéssemos conversar. Mas, vejo que estás muito ocupado. O homem sorriu, nenhum pouco convencido da resposta.
Tentando consertar a situação, Ariel lhe disse: Moro aí na frente, naquela casa. Eu sei – disse o homem. Se quiser, disse o Dr. Ariel, podemos tomar um café qualquer dia desses. Será um prazer, doutor.
No dia seguinte, o homem não apareceu, como o Dr. Ariel já imaginava. Mas, já no outro dia, por volta de 4 da tarde, alguém o chamou ao portão. Era o homem. Estava razoavelmente bem vestido, limpo e trazia uma sacola de supermercado consigo. Dentro, havia um livro.
Pensei que viria ontem. Desculpe, doutor, mas, se viesse ontem, talvez eu não encontrasse esse sorriso com o qual me recebe agora. Por que? Porque este sorriso, me dá a certeza, de que sentiu minha falta e que me recebe em sua casa, agora, com alegria e satisfação.
O sorriso permaneceu no rosto do Dr. Ariel, e duas ou três lágrimas lhe escorreram pela face, tamanha era a sua felicidade. Trouxe-lhe um livro, doutor, de presente. Podemos conversar um pouco? Sim! Mas, é claro! Acabei de passar o café. Venha, vamos entrar. Sinta-se à vontade.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem Ilustrativa/Divulgação/Ascom-Friburgo