O copo estava meio cheio sobre a mesa. As garrafas se acumulavam ao redor. Lucas Adler tinha o olhar voltado para o copo, enquanto juntava os farelos de pão diante de si, de modo a preservar a toalha branca e perfumada, pela qual tinha muita estima.
À distância, o garçom observava pacientemente o ritual monástico do seu mais fiel e generoso cliente. Estava acostumado à situações como aquela. Nem era assim tão tarde. Três da manhã. Nos melhores dias daquele estabelecimento, as pessoas vindas do baile começavam a chegar naquele horário, mais ou menos. Iam chegando aos poucos dando ao ambiente ares de aristocracia, mais pela vestimenta do que pelos modos, algo que durava, até que o primeiro cliente mais exaltado, suando às bicas, se livrasse do paletó e subisse na cadeira pra soltar a voz, a plenos pulmões, sob aplausos entusiasmados de uns e olhares impacientes de outros.
Era a deixa para que o clima de reunião formal cedesse lugar à descontração, por vezes, exagerada, que se estendia até que os primeiros raios de sol despontassem no horizonte, dando vida e cor à praia que ficava logo à frente do estabelecimento.
Miss Swendenborg, a esposa do general, diria em alto e bom tom: “Vamos, querido, já está tarde!” E eles sairiam à francesa, rostinho colado, juntinhos, caminhando par e passo, entre gracejos menos comedidos e risadas.
Essas coisas só estavam mesmo na mente de Lucas Adler, que tentava sem sucesso dar um desfecho menos indigno ao capítulo 27 do romance que estava escrevendo havia três anos. Três longos anos de muito esforço e pouco resultado prático.
Agora que havia perdido o emprego no jornal, as coisas ficariam mais difíceis. O dinheiro, que nunca fora suficiente e nem o merecido, estava por terminar. E não havia a quem mais pedir emprestado. As pessoas mais próximas já não acreditavam nas suas desculpas esfarrapadas e promessas jamais cumpridas de que iria pagá-las algum dia ou a qualquer momento.
Nada mais tinha de valor de que pudesse se desfazer e com isso reverter em algum dinheiro. Pensara procurar Estela. Mas tinha receio quanto ao modo como ela o receberia. Naquele último encontro de seis meses atrás algumas coisas haviam causado certo incômodo e constrangimento para ambos. Coisas que jamais haviam acontecido.
O que fazer? Não sabia. Mas a falta de dinheiro só não era pior do que a falta de imaginação. Ideias não lhe faltavam, mas, nenhuma o convencia a botá-la no papel. Rascunhava, mesmo assim, duas ou três laudas. Refazia outras cinco ou seis, que até o final da tarde de ontem julgara por concluídas.
Pensara pedir ao garçom a última dose de scotch. Mas, o garçom, seu bom amigo, certamente não aprovaria a ideia e o mandaria pra casa. Talvez fosse melhor esquecer essa ideia maluca de escrever um romance e arrumar um emprego formal, de gente normal e lúcida que se preocupa tão somente em comer, beber e vestir, e morar. E, vez em quando, comprar algum remédio pra dor de cabeça e ânsia de vômito.
Mas, aos 40 e poucos anos, suas chances eram quase nulas. Muito tarde pra virar gente em um país como este que ama e idolatra os medíocres. Tirou finalmente a bunda da cadeira, botou o jornal debaixo do braço e sorveu o restinho da bebida adocicada que ainda havia no copo. Procurou no bolso de dentro do paletó, o maço de cigarros que, acaso, não encontrou. Lembrou-se que o chapéu estava sobre a mesa e o apanhou, dando-lhe umas palmadinhas antes de enfiá-lo na cabeça. Não gostava de usar chapéu, mas, estava na moda, e ajudava a disfarçar a calvície, sobre a qual Estela vivia comentando, cobrando-lhe atitudes. Atitudes? Quais? O que se pode fazer diante dos imperativos da natureza? Os problemas que haviam dentro de sua cabeça eram bem piores do que aqueles que haviam fora dela, a parte visível da tristeza mal disfarçada.
Lucas Adler já caminhava pelas ruas do centro da cidade. Uma chuva fraca, embora intermitente caía desde a noite anterior. A calçada portuguesa estava escorregadia e seus sapatos eram velhos, mas, os seus passos, eram lentos e arrastados. Tudo se movia muito lentamente em sua vida e seus olhos, de repente, buscavam por alguma coisa em torno de si, que pudesse despertar o sentimento de esperança, então, adormecido. E talvez, a esperança, uma vez despertada, pudesse tomá-lo pela mão e levá-lo para algum lugar melhor e mais bonito, naquele país chamado ontem.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução Internet