Língua e escola
É, no mínimo curioso, perceber que a educação surge, no Brasil, com a promotora de domesticação e submissão, negando identidades e promovendo uma política de integração e comunhão nacional, desprovendo os grupos indígenas de sua cultura, língua e cosmovisão, por meio da imposição de uma só língua e de um currículo nacional.
É ainda mais intrigante perceber que no século XXI ainda estamos, de certo modo, catequizando as populações marginalizadas, ensinando-as a rezar, cantar e escrever. Negando-lhes acesso a sua própria cultura, a cultura genuína brasileira, forjada a sangue e suor de indígenas e africanos.
De certa forma, então, ainda estamos colonizados, e esse é o papel institucional da escola. Lembrar às camadas mais pobres que existe um país da Casa Grande e um país da senzala, este bem maior que o primeiro. Ensinar-lhes a etiqueta de como minerar riquezas e levá-las aos sesmeiros ainda é sua função sutilmente lavrada.
É neste contexto que o papel da língua brasileira revela facetas de uma ferramenta de doutrinação, esculhambação e piedade. Nestas orações introdutórias construo minha narrativa para refletir sobre o processo de ensino de língua, dois termos que são amalgamados num processo maior de adestramento, o primeiro, “ensino”, entendido como o modo pelo qual, o Estado criou estruturas, de força, para trazer a civilidade aos miseráveis e de outro, “língua”, como mecanismo de criação de subjetividade, ação do sujeito na realidade, pormenorizando-os como incapazes de acessarem a riqueza de um território que sequestrado, nasceu, ampliou-se e consolidou-se com a vida de milhões de cativos.
Não há, portanto, ensino de língua patrocinado pelo Estado imparcial. Toda aula de língua “materna” (ignorando o fato a existência de mais de 200 línguas), no Brasil, é um processo ativo de domesticação. E os professores, capitães do mato que os ensina como se portar, falar, pensar e existir em terras tupiniquins, neste contexto, é impossível não lembrar que, a língua falada, não a ensinada institucionalmente, neste país foi forjada:
[…] por milhões de pretos , pardos , amarelos , indígenas , pobres , desprovidos e desconsiderados , que desde sempre constituíram a imensa maioria da população das fazendas, vilas e cidades; da presença central de mães que transmitiram sua versão dessa língua a seus filhos (frequentemente gerados por homens brancos europeus em atos sexuais com variados graus de consentimento ou violência) , tirando das mãos dos homens europeus a linha de transmissão desse patrimônio linguístico e formando gerações de mestiços, de caboclos , pequenos “ bárbaros ” que podiam se apossar daquela língua sem grandes considerações por Lisboa (GALINDO, 2022, p.13)
Antonio Archangelo é pesquisador, gestor e professor, idealizador do Método Camões.
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