Bom dia, meu caro e diletante leitor. Permita-me uma confissão, nesta manhã primaveril que já se despede, sem deixar saudade. Vivo tendo pesadelos terríveis com Bukowski. Para os menos avisados, não se trata de nenhum remédio de faixa preta ou bebida destilada. Trata-se do meu fidalgo amigo Charles. O meu amigo Charles, pra que fique bem claro, é mais chic, mais descolado, mais desbocado, mais indiscreto e, também, mais sentimental, que aquele outro, o do Benito, pois sim.
Então, chefia, como ia dizendo, sonhei que estava caminhando com meu amigo Bukowski, também conhecido na intimidade como Henki. E nós caminhávamos, assim, despreocupadamente, pelas ruas de Seattle, até a primeira banca de jornal que encontrássemos. Trouxe a moedinha, ele me disse; Trouxe sim. 25 cents. Que é quanta custa o jornal. Atravessamos a rua movimentada, entre carros e pessoas, e já não me lembro de mais nada.
Esse foi o sonho mais recente. Diferente do anterior, no qual caminhávamos por uma rua deserta, isolada, esquecida por qualquer traço de civilidade. Casas abandonadas, ruas esburacadas e calçadas depauperadas, cheias de mato, fezes de cães, urina de gatos, e motocicletas estridentes conduzindo dementes, um horror.
Árvores, havia algumas, naquela cidade, mal formadas, mal desenvolvidas, como se o sopro da vida tivesse esquecido de bafejá-las. Uma vila de operários, de um bairro distante do centro, entregue ao abandono, desde que a fábrica de calçados encerrara as atividades e pusera todos os empregados no olho da rua.
Era noite, e nós, caminhávamos por essa rua, cada qual com sua garrafa. A minha acabou primeiro. E passamos a dividir a dele, do meu amigo Charles, naquela proporção generosa de, duas goladas pra ele, às vezes, três, e, uma pra mim.
Tudo bem. Lá na frente, quando chegasse a avenida movimentada que dava acesso ao posto de combustível, eu iria à forra. Se chegássemos até lá. Se não ficássemos encostados em alguma parede, dessas que ameaçam desabar a qualquer momento.
Bukowski é um cara legal, fazedor de versos, como eu gostaria de ser. Arrisco uns versos, às vezes, não ficam nada bom, mas eu insisto. Teimosia, o defeito do ser humano. Ele trabalhou nos Correios, eu não. As mulheres parecem não se importar com seu barrigão. Porque ele vive me contando sobre suas conquistas amorosas. E são muitas. E algumas nojentas, inconfessáveis.
E você? Ele pergunta, nessas ocasiões. Nada, não! – respondo.
Nada tenho a dizer. É sempre assim. Vidinha mais chata a que eu levo! Talvez por isso eu sonho bastante. O que não vivo aqui, no mundo da realidade, busco viver no mundo da ilusão, onde nada é real, embora, tudo possa acontecer.
Já amanhecia, bem me lembro, quando ele me disse, garoto, paramos por aqui. Acenou com a mão, despedindo-se, sem olhar na minha direção, e, com sua garrafa, debaixo do braço, se foi.
Acordei já era bem tarde. A velha cama, apoiada por tijolos, o velho colchão imundo, fedido, rasgado. Uma vontade louca de passar um café e fumar. E, talvez, um gole de vinho, em seguida. A Amadeo, poupe-me. Já é segunda-feira. E o poema de Bukowski, que eu mais gosto, martelando na minha cabeça, como acontece todo santo dia, fazendo-me lembrar, sem saber muito bem, ao certo, em que dia da semana estamos, e que eu fui nascido dentro disto, sim, nascido dentro disto. Born into this. Exatamente. Um mundo onde as máscaras caíram, todas, e a falsidade, deu lugar à desfaçatez. Sabemos, de maneira muito clara, quem são mocinhos e bandidos.
Vou ao banheiro lavar o rosto, deparo-me com a feiura de uma cara amassada e olhos apalermados, inchados. Dormir é bom. E me ocorre a mesma maldita pergunta de toda manhã: Que chance tenho eu na vida, um caro de 54 anos, um fracasso. Um redundante fracasso. Nada que conste no currículo que mereça honrosa menção. Em ambos os currículos, o sentimental e o profissional. Yes, Mr. Shakespeare, desgraça pouca é bobagem.
Então, abro a porta, do quarto onde moro e que também me serve, agora mais do que nunca, de local de trabalho e de estudo, aquele que me interessa. E, talvez. Só a mim. E atravesso o longo corredor que me separa do portão de folha, pintado de marrom que me leva à rua libertadora a cada manhã.
O momento sublime da existência, quando me deparo com o sol, logo pela manhã, que já desponta no leste. Faço minhas orações, olhando na direção do sol, como sempre faço, os olhos fechados, atento à respiração e contando os batimentos cardíacos.
E ultimamente, as minhas orações, elas começam assim: Born into this; Born like this; Into this. Traduzindo: Nascido em meio a isso; nascido assim, em meio a isso… Deus, ouça-me…
Vou mais longe. Volto a aprisionar o meu pensamento, trago ele para a realidade dura, nua e crua. Onde as pessoas já não tem emprego, talvez daqui a pouco, não tenham trabalho. Onde as pessoas moram de favor, comem de favor, recebem esmolas e se sentem felizes e satisfeitas, e logo estarão defecando no mato que cresce nas calçadas ou atrás dos postes, cujas luzes, estão queimadas, há muito tempo. Onde, se agradece com olhares compassivos, a esmola dada por aqueles que se dizem representantes de algo mais sagrado do que eles próprios. Onde a fé se tornou artigo de luxo, porque a dor do corpo não é menor nem maior que a dor da alma. Nascido em meio a isso; nascido assim, em meio a isso, tudo isso. E pior, agora que volto meus olhos para a nuvem que passa sobre minha cabeça, eu me lembro, sem disfarçar o sorriso cínico, que me é tão peculiar, que eu sabia, lá atrás, quando me decidi por isso, que seria assim. Nascido nisso.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa