Rio Claro, 1926, em um sábado qualquer…
Ele o esperava havia algum tempo à mesa do café. Uma garoa intermitente e gelada caía sobre a cidade naquela manhã. Mesmo assim, alguns passarinhos ciscavam no chão e sobre as mesas desocupadas postas na calçada. E nenhum garçom, todos à porta do estabelecimento, se atreviam a molhar-se para espantá-los com o guardanapo sempre à mão.
Eram poucas as pessoas que transitavam nas calçadas àquela hora do dia, que amanhecera coberto de nuvens e não revelara a face mais linda do sol até aquele momento, embora fosse um sábado.
Em uma mesa mais ao longe, alguém havia deixado um livro, já bastante molhado devido à chuva. Pensou ir apanhá-lo. Olhou algumas vezes em redor querendo com isso criar coragem para tomar para si o que não lhe pertencia. Mas se contera, resistira com muito esforço ao ímpeto que lhe era natural, porque se lembrara de repente, que não fora essa a educação que recebera.
Ocupou-se do maço de cigarros que encontrara no bolso de dentro do paletó, um tanto amarrotado. E antes de tirar e acender um dos poucos que ainda restava no interior do maço, ajeitara com a mão, a parte de trás do cabelo que, com algum incômodo, reconhecera comprido demais para o seu gosto. Mas, antes de sujeitar suas fartas e vistosas madeixas às mãos hábeis de seu bom amigo Rubens, tinha de pagá-lo pelos serviços do mês anterior.
E, antes que a frustração lhe acometesse, lembrara-se também que ainda devia para o homem da banca de jornais. E duas ou três gorjetas para o sempre atento e dedicado Laurinho, o garçom de sua preferência, que sempre lhe servia tão bem.
Talvez o amigo, pelo qual esperava, lhe trouxesse boas notícias naquela manhã de sábado. Um telegrama, quem sabe, de sua mãe, disposta a lhe confiar mais algumas benesses, com os trocados que, vez por outra, lhe enviava.
Para dona Zuleica, o filho continuava sendo, mesmo depois de tanto tempo, um dedicado estudante com futuro promissor muito bem instalado na cidade das luzes artificiais
Havia, porém, muito tempo, que não era assim. Na noite anterior, finalmente ele admitira, olhando-se no espelho que, a literatura e o jornalismo nascem e morrem com as palavras, e que a vida, é bem outra coisa, é muito mais que isso.
Estava convencido a compartilhar essa meia verdade com o amigo pelo qual aguardava impacientemente, olhando para os lados, como se, ao fazê-lo, pudesse capturar o tempo, a nuance de uma vida desconhecida e misteriosa, que atendia pelo nome de mulher, a cruzar o seu caminho.
E naqueles minutos, enquanto, sentado à mesa do café, diposta na calçada em meio às outras, esperava pelo amigo, duas ou três mulheres surgiram e todas bem vestidas, e passaram na calçada por ele, sem acusar todavia a sua presença.
A atitude pouco cortês não lhe incomodara nenhum pouco. É certo que esperara ao menos um olhar, talvez, um bom dia, mas logo se resignara com tal indiferença.
Encontrara consolo naquele possível cheque de sua mãe que o amigo estava lhe trazendo – quem sabe. Percebeu que o livro continuava sobre a mesa, abandonado. Poderia apanhá-lo finalmente, levá-lo para casa, e secá-lo à lareira do minúsculo apartamento que ocupava na Rua das Flores. E então, consumi-lo avidamente, naquela noite fria, que estava por vir, antes que o mesmo fosse consumido pelas traças.
Demoraria alguns dias até que as folhas das árvores caíssem. Precisava limpar o seu casaco, de modo a torná-lo menos desagradável às pessoas de seu convívio, e eram, poucas. Porém, as necessárias.
O amigo, pelo qual esperava, era uma dessas pessoas. Bom sujeito, mas, não muito cumpridor de suas promessas e de seus deveres, dos quais procurava esquivar-se, sempre que possível.
O amigo, era, também, um fumante inveterado, e estava doente, embora não admitisse. O frio intenso daqueles últimos dias, apenas agravara a sua situação. Estava desempregado havia alguns meses, desde que fora demitido do jornal, ao ser surpreendido furtando um dinheiro da bolsa da moça da limpeza. Dissera ele, no interrogatório, para comprar um maço de cigarros, que acaso, não havia encontrado dentro da bolsa, e nem nas gavetas das mesas de trabalho de seus companheiros de redação. Permanecera dois ou três dias preso, em meio a desocupados, falsários, prostitutas, assassinos e indigentes e fora solto por bom comportamento. Mas não desobrigado a varrer a calçada todos os dias, pela manhã, durante 7 dias, à frente do distrito policial, onde estivera confinado.
Essa breve e miserável história, entretanto, estava convencido, não daria uma boa crônica de 15 linhas, para a edição de terça-feira, nem mesmo um conto interessante de duas páginas, que pudesse vender para alguma revista e assim garantir duas ou três semanas de almoço no Garfo de Ouro.
Passaram-se os minutos, avançavam-se as horas e nada do amigo aparecer. O sol, algumas vezes, ameaçara despontar no céu, rompendo as nuvens densas e cinzentas que insistiam manter-se unidas e muito resistentes sobre a cidade, e nada do amigo chegar.
As ideias também não vieram e as lembranças desapareceram. Pensou levantar-se e apanhar o livro abandonado, ainda sobre a mesa, distante alguns metros daquela que ocupava. Tomou o último gole do café que já esfriava na xícara havia algum tempo. Despediu-se com um aceno de mão para os garçons, pacientemente plantados na porta do estabelecimento, e se foi, com o jornal do dia anterior e o caderno de anotações debaixo do braço. Não abriu o guarda-chuva, não era necessário. A garoa já havia dissipado. Ao atravessar a rua, observou cheio de esperança, que o amigo, finalmente, vinha ao seu encontro.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução Internet