Roger era um bom sujeito. Mas, havia tomado uma decisão importante em sua vida. Ele recusara o século XXI. E o fizera deliberadamente, sem nenhum sentimento de culpa ou remorso. Já avançava a casa dos 50 anos e, nos últimos 20, tivera tempo de sobra para refletir e tomar sua decisão. Afinal, os valores que lhe haviam sido apresentados, desde que se dera por gente, através de palavras e exemplos, haviam criado raízes em sua mente e em seu coração e estava convicto de que permaneceriam consigo para sempre, inatacáveis. Valores baseados na moral cristã e na cultura ocidental, atualmente, postos de lado, desprezados, por uma geração que hoje conduz o mundo. E eles poderiam ser os filhos e as filhas de Roger, se eles os tivesse tido. E o fato de não tê-los, não diminuía em nada a sua decepção. Um sentimento com o qual era obrigado a conviver, que nascera em princípio quando percebera a omissão e a covardia da sua geração, que vira o país ser atacado em todas as frentes pelas tolas ideias culturais marxistas e as aceitara passivamente, como se aquilo que há de mais desprezível na sociedade humana, não pudesse fazer o estrago que fez, colocando abaixo, em um processo ardiloso e demorado, valores como honra, dignidade, honestidade, fé inabalável em Deus e na moral cristã, respeito às leis e às autoridades e àqueles que tem a sagrada e intransferível missão de ensinar, ou seja, ou pais e os mestres.
Agora, muito cônscio da realidade e muito amargurado, Roger entendia que jamais as mazelas da sociedade humana serviram de desculpa para os erros e os fracassos da geração de seus pais, por exemplo. Mérito e demérito, o resultado natural conforme o esforço de cada um, independentemente dos erros e acertos.
Até pouco tempo, quem matava e roubava era criminoso e ponto final. Cedia aos seus impulsos mais primitivos, porque era fraco ou sofria desvio de caráter. Discutia-se menos autoria e mais agravantes e atenuantes, do crime praticado. Preocupava-se em se fazer justiça, e dessa forma, reparar de algum modo o sofrimento da vítima.
Mas, nos jornais que ainda lia a cada manhã, Roger constatava desolado que a hipótese de que o ser humano é tão somente resultado do meio em que vive tornou-se regra.
Ao tempo de Roger, as minorias se adaptavam à maioria, hoje, prevalece o inverso. E ai de quem pense o contrário. E Roger pensava. Mas se abrisse a boca, se ousasse escrever, seria apenas uma voz a pregar no deserto.
E a cada vez que se lembrava saudoso de seus pais, Roger se questionava, onde estavam os homens e as mulheres que, por seu valor e trabalho digno, em favor da família e do bem comum, se destacavam naturalmente na sociedade, no seu âmbito de atuação, e serviam como faróis a iluminar as pessoas em busca de caminho e orientação.
Naquele tempo, quando Roger ainda era um adolescente, ninguém se tornava criminoso porque assistia a filmes de faroeste na tevê ou no cinema.
Mas, se ousasse cometer a besteira de ligar a tevê ou entrar em uma sala de cinema atrás de diversão ou passatempo, ele facilmente descobriria, que agora, a violência gratuita saltou das telas para o mundo real. E já não espanta e nem indigna, a quem quer que seja, embora continue a ser temida e evitada, pelas pessoas de bem, as que restam.
Havia a quem reclamar dos excessos cometidos por parte daqueles que não sabem respeitar os direitos alheios. E hoje, não. Porque os guardiões das leis, os defensores, os garantidores da carta magna, tornaram-se os seus maiores detratores e seus mais indignos traidores, interpretando-as a bel prazer conforme os interesses em demanda.
Tudo parecia ter piorado aos olhos de Roger. Os representantes do povo, ao povo dão as costas, quando não se omitem e se acovardam temerosos de que suas mazelas, oriundas de sua fraqueza moral, antecipem a sua queda inevitável.
Os avanços tecnológicos servem de instrumento para que os maus intencionados pratiquem seus crimes, fraudando descaradamente processos legítimos e democráticos, nos quais se expressam a vontade da maioria.
Jamais tantas mentiras foram disseminadas com ares e pompas de verdade, por aqueles que se declaram anunciadores do novo evangelho e que abusam da boa-fé humana para obterem vantagens e lucros, meramente materiais.
Você compreende quando lhe digo essas coisas, meu caro e futuro leitor, escrevia Roger, em seu diário, naquela manhã. E como era difícil para o seu orgulho, o seu resto de esperança, escrevê-las.
A medicina, desminta-me, se puderes, tornou-se mero negócio, assim como a saúde pública, e a educação, da mesma forma.
Com status de salvação, vendem-se vacinas e remédios que fazem fortunas dos laboratórios. Médicos já não curam, em sua maioria, angariam e fidelizam clientes, como o faz o dono de uma padaria, ou, qualquer comerciante.
A esse momento, as lágrimas que escorriam dos olhos de Róger pingavam nas páginas de seu diário.
Mas ele estava obstinado naquele manhã, e não interromperia a escrita enquanto as ideias surgissem abundantes e em sequência, como a água refrescante surge na bica a todo momento.
Saiba, meu fiel leitor, que vendem-se diplomas com promessa de projeção social e ganho fácil, em um futuro breve. Mas, o que pode sair da mente de futuros doutores que praticam em público, os atos mais nojentos e repugnantes à dignidade humana?
E neste país, no qual um dia ousamos acreditar, mesmo as coisas mais acessíveis a todos, e, em certa medida, as mais bonitas já produzidas, como o futebol e a música, tornaram-se máquinas avassaladoras de fazer dinheiro e nada mais. Preocupação com o talento e a arte? Nenhuma.
E tudo acontece com a velocidade alucinante dos novos tempos, onde tudo se repete e tudo se desfaz como o sólido se desfaz no ar.
As pessoas, em sua maioria, tornaram-se absolutamente descrentes dos valores sobre os quais se fundou e se consolidou a civilização ocidental a qual pertencemos, meu caro e atento leitor.
Destruiu-se tudo, para que tudo perdesse valor e credibilidade aos olhos cada vez mais incrédulos e sem esperança da pessoa humana. E tudo isso se fez para o estabelecimento de uma nova ordem, na qual, a maioria das pessoas, confinadas em seu espaço restrito de atuação, apenas sobrevive, esperando a morte chegar.
Estamos no limiar de tempos ainda mais sombrios. Mas estamos anestesiados, paralisados, conformados e muito ocupados com afazeres inúteis e sem propósito prático e objetivo; ocupados com as nossas mais pueris e tolas ilusões, devidamente distraídos, tendo à palma da mão, a máquina diminuta e muito eficiente, que nos aprisiona e nos condena ao pesadelo que não cessa. E, portanto, já estamos absolutamente resignados com tal condição que nos é imposta, e, por opção, permanecemos alienados dessa realidade devastadora que nos oprime e nos aniquila, pouco a pouco, de modo discreto e indolor.
Quando despertamos da letargia em que nos encontramos, será tarde, já não haverá mais o que salvar ou reconstruir.
Penso que fui além do que deveria, caro leitor. E tenho certeza, que você ficará indiferente a essas linhas. Paciência. A missão é minha, a escolha é sua. Bem-vindo ao século XXI. Talvez, agora, você finalmente se convença, que já está nele.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Reprodução