Se todos os filmes trouxessem um pouquinho do que o efeito Blade Runner provoca no coração da gente, ah chefia: tudo seria diferente! Ao final do mês de junho, celebramos 40 anos do nascimento desse filmaço, capaz de elevar tua alma, e mandar qualquer marasmo pro espaço.
Harrison Ford vive Deckard, o caçador de androides. Para a direção do filme, o inglês Riddley Scott. Também conhecido por dirigir “Alien O Oitavo Passageiro”, “Thelma & Louise”, “Hannibal”, “Gladiador”. Ford em 1982 já era o cara em Hollywood. No currículo, papéis de responsa, como o mercenário sambarilove Hans Solo em “Star Wars”, e o fera-neném incansável em “Indiana Jones”.
Blade Runner é ficção científica de primeira: nada de efeitos especiais toscos, forjados na praia da asneira. A trilha é puro encanto: denso manto sonoro, entrecortado entre esquinas sutis ora da adrenalina ora de um elegante, tocante lirismo, cortesia alucinante do finado Vangelis.
O filme é inspirado no livro do norte-americano Philip K. Dick. Sim, o homem sci-fi. Que voltou do futuro para sentenciar o destino da humanidade. Blade Runner é adaptação de seu livro de 1968, “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”. O termo “blade runner”, algo como caçador de recompensas, foi retirado de um roteiro de um dos papas da beat generation, e seminal ícone da contracultura, o grande escritor William Burroughs. Philip K. Dick ainda seria adaptado para o cinema em “O Vingador do Futuro”, de 1990 e “Minority Report”, de 2012.
Blade Runner ganhou outras edições/versões, e também continuação. Mas isso é pra outra hora, outra história. Pois bem: filmado em 1982, mesmo ano de “E.T- O Extraterreste”, de Steven Spielberg, o filmaço é ambientado em uma caótica Los Angeles do século XXI. Metrópole pós Fritz Lang. Temos aqui o amálgama retrô-futurista sob tinta sinistra, movediça, brutal distopia, sem massagem, chefia. Eterna é a chuva radioativa. Pesada é a publicidade em pilhas e pilhas de ácidas pilhérias, permeando prédios godzilla poluindo nossas pupilas. Cidade suja, cujo sol da Califórnia caiu em desgosto.
Mas preciso falar dos androides, os Replicantes. Eles são demais. Verdadeiros rock stars. O fabricante dos androides e sua “disney da tecnologia” é uma espécie de Erlon Mosca da época. Forjou brinquedos letais, com memórias implantadas, artificiais; enquanto embarca suas criações para colonizar planetas gringos, curte uma partidinha de xadrez com seu colega engenheiro que sofre de uma rara doença, causadora de um envelhecimento precoce. E olha só: depois da missão cumprida, despachar os replicantes não é ato considerado crime não. Apenas queima de arquivo, meu amigo, afinal Erlon Mosca faz do seu umbigo oportuno estado de exceção quando bem quiser.
E voltemos aos replicantes. Mais humanos que os humanos. Quando sua consciência é “despertada”, sua finitude revelada, então o pesadelo da data de validade os esmaga. Com o tempo, desenvolvem suas próprias emoções. Tem seus próprios sentimentos, em conluio aos implantes. E assim carregam contínuos sachês dela, a angústia. Quatro anos de vida. Vivem pra morrer antes da Copa do Mundo, queimam a largada, zeram antes das Olimpíadas. E cobaias acorrentadas ao manancial dessas recordações fakes, personificam a lenta queda, configurando-se ao abismo a cada cafungada pela maldita Los Angeles, da chuva ácida sem refresco nem sambinha de breque. Replicantes revoltos sob descabelada ampulheta, morbidez fim de feira. Dezenas de meses vivendo na terra e “partiu paletó de madeira”.
O meu amigo Celsinho é fã da Pris. Pris do “punk visú”: mais uma grande atuação da sensacional Daryl Hannah. Pris das blond piruetas. Anárquica, feroz, dissimulada na medida. Do spray esculpindo aos olhos sua faixa preta, a poesia do semblante que apaixona a memória, eu sei, você que é sensível não ignora. Quando é cena da Pris o Celso pede bis. Rachel é a outra musa, replicante apaixonante, o Deckard que o diga, retruca o Celsinho, olhos pra cima, ar eufórico-delirante. Inclusive ela e o Deckard vivem um affair, você não viu na capa da Marie Claire? As duas, no entanto, sequer chegam aos pés de Stephanie Guardia.
Mas, caro leitor, no final das contas, quem rouba a cena mesmo é o ator Rutger Hauer. Hauer fez outros filmes como “A Morte Pede Carona”, embora nada chegue perto dele na pele de Roy, o líder dos replicantes. Antagonista perfeito. Eu sei, o deboche verbo-visual contido em sua autossuficiência destrói. Dentre tantas cenas antológicas de Blade Runner (como a quebra em slow da vitrine, Deckard atirando em Zhora, e também a morte de Pris, lembro de ainda garoto chocado, vê-la “se estrebuchando toda”, pra expirar numa agudeza sonora dolorida, grudante impacto aos holofotes memorex do meu peito). Voltemos ao Roy. Suas falas rock and roll são inesquecíveis, caro leitor: “Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva”. Ou que tal essa? “Viver com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser escravo.”
Ressalto novamente a sagrada trilha sonora. Viciante órbita, meu velho bálsamo. Pátio celeste, preservando raros, oníricos passos, tão sutis, sublimes em seu teor cadenciado, fino, silencioso-confabulante em favor do nosso bom reservatório espiritual, caro leitor. O Celsinho provoca, detrator, afirmando que tem o sax cafona meio Kenny G” lá pro meio. Pura inveja. O filme é elegante do começo ao fim. E a mensagem? Cortante. Sim, o ser humano será obsoleto. Não há alento. Disruptiva é a tecnologia, chefia. Você é um número fajuto na lógica neomaquiavélica do lucro. Mero instrumento, o ser humano gregário, cada vez mais chucro, falso adaptado. E o Celsinho entre o cinzeiro e a brasa abraça a sentença de que o real é o virtual, a sociedade espetáculo banal, e ainda gargalha: “acabou pro ser humano, bau-bau”. Será? Fiquemos com a frase do criador, Philip K. Dick: “A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece”.
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